sábado, 3 de março de 2018

Conversas d'Ouvido com Paulo Beto

Entrevista com o cantor, compositor e poeta brasileiro Paulo Beto. Excêntrico, por vezes surreal e revestido de uma teatralidade poética. Na sua sonoridade o erudito e o popular convivem em perfeita harmonia, pincelando com um certo psicadelismo. Este ano prepara-se para editar novo disco, que irá suceder a "Memórias d'Aldeia do Bicho Que Mente" (2015). Nesta edição das "conversas d'Ouvido" analisamos o presente, viajamos ao passado e projectamos o futuro com o lirismo habitual de Paulo Beto...


Ouvido Alternativo: Como surgiu a paixão pela música?
Paulo Beto: Somos canais carnais dotados de artérias arteiras. A música é tudo, em toda parte, penso que quão mais próximos do nosso estado de natureza naturante estivermos, mais faremos, ouviremos, nos expressaremos na música, no canto, no tambor, na dança, no movimento, que anima a ânima, perpassa o organismo e se realiza enquanto transbordamento. Ou seja, no instante em que não mais for possível ao organismo abrigar a força, ela o evade, neste instante, faz-se a Arte; nasce o ato, legitimado por uma obra, que neste caso, é música. A música pra mim é essa Entidade que nos fortalece, guia, rege e mantém. Agora, falando especificamente do universo em que eu cresci, a música sempre foi atriz principal. Fui criado em meio aos discos do meu pai, grande apreciador de música, que quase todos os dias ao chegar do trabalho os punha na vitrola para senti-los, um verdadeiro amante dos encantos da canção. Aprendi com meu pai, certa vez, uma coisa que jamais me esqueci, um conselho que trago comigo, ele dizia: “Pra sentir o som, pra ver a música, tem que fechar os olhos”, e eu garoto, fechava os olhos e vivia experiências profundas. Todos os domingos eram horas e horas de audição, eu e meu pai. Boa parte da adolescência pra juventude, foi isso, ouvindo discos, tardes adentro, madrugadas, ouvindo tudo que aparecia; e esse hábito permaneceu, até hoje ouço muita música e sigo pesquisando as maravilhas que essa expressão já possibilitou a espécie humana de criar; devo isso ao meu encantado pai, essa paixão pela música, sem dúvida, foi alimentada por ele, ser de extrema sensibilidade e escuta. Então a coisa da música sempre foi muito forte, o mistério por trás de suas veredas sempre me soou irresistível. Quis estar dentro da onda, ser parte daquele organismo, deveras generoso e potente, gerador de impulsos de vida e cores, sensações, universos e força, ser um elo desse espiral de vibração cósmica mantido em vida pelo som que os seres são capazes de produzir na atmosfera. Daí comecei a tocar violão, lá pelos 12, 13 anos de idade, com o violão que era da minha mãe, o mesmo que utilizava para embalar o sono de mim e de meus irmãos. Minha mãe, muito musical e criativa, e meu pai, dotado de um gosto muito refinado e ouvido apurado. Então unindo todas essas coisas, creio que foi um caminho muito natural. Eu sempre senti a música como um instrumento de transformação, desde os primeiros acordes o que eu mais queria era compor, juntava dois acordes que funcionavam e ficava escrevendo letras, fazendo canções (que sempre apareceram para mim como um lugar, como uma ferramenta, um modo, deveras eficaz de – naquele primeiro momento, depois permanecendo por toda a vida – de expurgar minhas revoltas, colocar pra fora o que me matava, de exercer meus anseios artísticos, de comunicação, de discussão em torno das questões da existência, do ser no espaço, das abominações naturalizadas pela tradição, enfim, um modo de relatar aquilo que chocava e choca meu espírito). Desde que comecei, nunca mais parei. Quando a gente ativa o ouvido, timbra o organismo nesse lugar de permitir a este sentido uma experiência mais completa, veremos que tudo é música. E que a música é uma experiência “orgástica” e “orgasmática”, ou seja, é uma experiência dos orgãos, cujo gozo do organismo é atingido a partir do encontro do som com os órgãos e todos os microcorpos que compõe este organismo, quão mais esta ação for possibilitada e vivida longe dos olhos da consciência, mas ela pode ser profunda e até espiritual, possibilitando de fato, uma experiência de religação.

É impressão nossa, ou na tua música as palavras assumem um papel principal?
De algum modo, sim. A música possibilita à palavra esse retorno à sua potência de expressividade. A palavra não apenas como um acessório de construção de significados, de respostas, não como uma mera ferramenta que tangencia o sentido, mas como um ato de força, uma expressão genuína do organismo que quando é provocada, altera e reverbera tanto pela intenção em que é evocada, como pelas condições do espaço em que ela é submetida, espaço este que vai determinar, de acordo com suas características o modo com que o som emitido, ritmado, ou não, vai ser recebido pelos mais distintos seres que naquele instante ali habitam. A música, bem como a poesia, nos permite alçar à palavra à instância de símbolo, que, por sua vez, chega ao ouvinte-receptor como algo em aberto, que apenas sugere e jamais define, onde cabe a ele, sentir e interpretar da forma que melhor lhe convir. Como tecer uma crítica à palavra sem utilizá-la? Uma crítica a esta palavra, cada vez mais definida e conformada, pronta, fechada, uma crítica à palavra enclausurada. A música vira esse espaço, esse lugar possível, de unir o som à música da palavra, e gerar uma terceira e nova coisa, que é a mesma mais toda a vastidão de possibilidades que nela está contida. A palavra falada já é música, já tem ritmo, melodia, intenção, quando somada à melodia novos signos instantaneamente são gerados, daí em diante ela passa a expressar, quão mais conectada a seu intento primordial, a sensação da unidade e da harmonia cósmicas, e a partir de então, segue sua experiência que será concluída quando atingir o canal carnal, que é o ser. Livrar a palavra de seu uso corriqueiro é um desafio, gosto muito de usar em minhas canções palavras que não são comuns, nem de serem ouvidas, nem de serem utilizadas em canções, e são tantas, tão bonitas, que acaba não sendo tão difícil; a nossa língua é muito musical. Estou a serviço do retorno da palavra à sua condição de expressão, de expressividade. Essa expressão é amplificada e direcionada através da entonação, ou seja, da intenção primordial, vital, do organismo em questão. Essa entonação, na música, é possibilitada pela melodia. E bem como, a experiência do cinema é imagem e som, a da música, ao menos desta, que estamos a falar, é som e palavra, e isso é imagem, isso gera imagem. Essa expressividade gera imagem, e essa imagem, vai ser pra cada ser uma, é um portal que se abre, já a palavra, como mero ornamento linguístico a serviço da construção de um sentido definido, já é a linguagem sendo utilizada como mecanismo de controle, não gera imagem, mas significado, definição, especificidade, ao invés de abrir e apenas sugerir, direciona, fecha. É um perigo. Em suma, não sinto que assuma um papel principal, sinto que em mesma proporção, a música e a palavra são protagonistas em minha música. Eu apenas procuro experimentar, criar, a partir dessa relação, novos usos, em busca de novas paisagens, motivado por um constante desafio de fazer caber o que aparentemente não caberia, ou funcionar o que não parecia ser possível, sou movido por isso; a música não pode perder isso, as palavras querem e necessitam dançar; estão vivas e ávidas por novos usos e significados.

A tua música surge como uma mescla de diversas artes, revestindo-se de uma certa teatralidade e uma poética acentuada, para ti a música é muito mais que uma sonoridade?
Sim e não. Se entendermos palavra e música como sonoridades, sim, a música é apenas uma sonoridade. Mas a sonoridade atinge a cada um de uma forma específica e única, logo, ela é uma pra cada pessoa, é uma expressão relativa, não existe sem o receptor, e existe de acordo com a capacidade do mesmo de captá-la; assim, ao que parece, a música acaba por ser mais que uma sonoridade. Penso que a expressão artística é uma resultante de uma vocação do organismo, é a forma com que ele encontra de relatar, de contar, e daí sugerir, tangenciar novos afetos e propor novas vias de transcendência, exaltar um detalhe que ainda poucos conseguem perceber ou dar a devida atenção e tamanho. A música é uma das formas que este impulso encontra de se expressar, isto é, de se manifestar na materialidade. É como se o corpo (dotado de infinitos corpos dotados de infinitos corpos, e assim, sucessivamente), através das ferramentas de ação que possui, que condicionam e são condicionadas pelas especificidades de sua natureza, para além de qualquer ideia de consciência, logo, de conceitos, irá esforçar-se para fazer reverberar no espaço suas pistas, suas vocações mais íntimas.
A música pra mim carrega necessariamente uma força de transformação e transcendência. A música, base dos rituais, da ideia de culto, que por sua vez é oriunda da ideia de rito; sendo o rito, uma celebração musical, música abrindo canais, descortinando ordenamentos, normas, condutas, doutrinas, costumes e dogmas sociais, desvelando o filtro dos sentidos e irrompendo as barreiras do palpável, proporcionando ao ser o acesso às outras dimensões, a comunicação com seres e energias de outras esferas, mas que existem concomitantemente à dimensão que captamos, são apenas realidades incapazes de serem percebidas a priori pelos filtros da consciência, há que rompê-los, para via intuição criativa, com um organismo potente e em equilíbrio com tudo a sua volta, ser guiado pela intenção mais autêntica capaz de ser gerada pelo corpo e transcender. Num contexto mais tribal de existência, bem como antes da ideia de mercado, comércio, produto, ela, a música, era condição de existência, instrumento vital de permanência na Terra, ato de resistência frente às mais distintas intempéries, protetora e companheira, e acima de tudo, objeto de libertação da consciência, ajustando o ser à vibração de todos os seres que dividem o mesmo hic et nunc (aqui e agora) que ele. A transcendência é uma necessidade vital, fruto de nossa configuração meio bactéria, meio estrela. Enfim, o mundo da internet, dos jogos, dos videogames, a multiplicação de Igrejas e drogarias, essa onda conservadora, com discurso militarizado que vem no joio dela, tudo isso, a meu ver, age e é fruto, de uma necessidade de encantamento, magia, criatividade, sensações outras, que não encontram na sociedade espaços de utopia, espaços de escoamento artístico, de difusão de Arte, da Arte no seu viés de cura, de religação, de experiência de libertação para se desenvolverem. O que me entristece mais, nessa coisa de música massificada, reduzida a entretenimento puro, produto com data de validade, é que vamos tirando de circulação as músicas e os músicos que estão aí para ajudar, para apoiar, para contribuir, para cooperar com a expressão mais pura que vossos organismos são capazes de produzir, gerando canções que acalentam e curam. A música tem uma função social, é um instrumento de combate ao tédio, à mesmice e sempre será protagonista dos grandes episódios da humanidade, dos mais úteis aos mais inúteis, dos que mais auxiliam, àqueles que mais se aproveitam da miséria, dos mais libertários aos mais reacionários e por mais que alguns busquem fazer dela tudo menos o que ela é, jamais conseguirão alterar sua natureza, a música é elemento fundante e mantenedor do grande espiral, energia vibrante que nos interliga, que une todos os seres à grande substância; é parte da força que mantém tudo como está.

Olhamos para ti e lembramo-nos de um músico português, António Variações, do qual podemos afirmar que viveu muito à frente no seu tempo, acreditas que muitas vezes podes ser incompreendido?
Penso que o artista opta pela arte justamente por ser um lugar de liberdade. Escolhe esta zona de expressão por saber que ela é companheira inseparável e nos acalma, na medida em que vamos relatando, de forma não comprometida com fatores externos, as experiências vividas, de forma intuitiva, a relação com o além-aqui. Não penso muito sobre isso, talvez porque tanto não busco compreensão, como não faço comprometido com o sentido. Busco mais uma relação de entrega dos receptores presentes no momento em que se dá a experiência sonora. Sinto que a música possibilita essa entrega para qualquer ser que esteja disposto, o difícil, é encontrar essa disposição em tempos de tamanha liquidez, avidez por consumo e pressa, este é o grande desafio dos operários da Arte, pra mim, hoje. A música, pelo som, independe da palavra e pela palavra independe do som. Busco fazer uma canção que não cesse perspectivas, nem busque determinar entendimentos e/ou congelar pontos de vista. Ao contrário, penso a canção como um objeto com autoridade de sujeito, com vida própria; palavra (que já é música) e som, gerando uma terceira coisa, que pode ou não ser canção, mas será sempre uma terceira coisa, como filha do amor entre o som e a palavra. Se essa terceira coisa for capaz de contribuir para que algo seja alterado na pessoa que a receber, a experiência já foi válida, já foi útil, pois cumpriu com a principal de suas incumbências. Portanto faço uma música que auxilie na abertura dos canais, das vias de percepção e principalmente, que seja capaz de contribuir para o orgasmo do organismo.

Segundo sabemos preparas um disco novo para o próximo ano, já podes antecipar algo, sobre o que podemos esperar?
Vamos lançar um álbum novo, em julho, ao que tudo indica se chamará “a Utopia Tupi”. Mas antes, em abril, vamos lançar um EP, “Congregação Amonus”, cujas canções permeiam o universo do Carnaval. Dia 4 de março vamos lançar o clipe de uma das canções do EP, chamada, “Acabou o carnaval”, composta por mim e por meu amado pai.

Como gostas de descrever o teu estilo musical?
É muito difícil. Eu não consigo. Não mesmo. O artista vai buscar se expressar, penso eu, através do maior número de formas possível, ainda que viva numa condição que o acabe conduzindo cada vez mais à escolha de uma única via. Penso que a definição de um estilo está muito mais ligada a uma demanda de mercado do que a uma vocação genuína do artista.

Para além da música, tens mais alguma grande paixão?
Sou atraído pelo fazer artístico, pelo lugar de expressão que a arte nos lança e possibilita existir; a poesia, o cinema, a pintura, o teatro, a leitura, o trabalho manual, com barro, madeira, mexer com a terra, tudo isto me inspira e move.

Qual a maior vantagem e desvantagem da vida de um músico?
Maior vantagem é viver do que ama e do que sabe que é o seu lugar de contribuição para a humanidade; a maior desvantagem é a dificuldade de lugares bacanas para apresentação, para a difusão da obra. Parece haver cada vez menos espaço no mundo para a poesia, para a arte. Mas só parece.

Quais as tuas maiores influências musicais?
Nossa, são tantas. Tom Zé, Jards Macalé, Gilberto Gil, Baden-Powell, Noel Rosa, Cartola, Nelson Cavaquinho, Dorival Caymmi, Milton Nascimento, Violeta Parra, Janis Joplin, Elis, Gal, Édith Piaf, Naná Vasconcelos, Laudir Oliveira, Arthur Nunes, Arnaud Rodrigues, Pixinguinha, Mercedes Sosa, Caetano Veloso, Lia de Itamaracá, Monsueto Menezes, Bob Marley; dentre tantos outros.

Como preferes ouvir música? Cd, vinil, k-7, streaming, leitor mp3?
Vinil.

Qual o disco da tua vida?
Muito difícil escolher um, mas tem três que foram determinantes pra minha formação musical, que são: “Minas” e “Milagre dos Peixes”, de Milton Nascimento; e “Transversal do Tempo” de Elis Regina.

Qual o último disco que te deixou maravilhado?
Um disco de músicas populares da região sul do Brasil.

O que andas a ouvir de momento/Qual a tua mais recente descoberta musical?
Uma cantora e compositora baiana chamada Diana Pequeno. Eu já conhecia, alguma coisa, mas só recentemente, que achei um vinil dela “Eterno Como Areia” à venda e coloquei pra ouvir, que pude ser capaz de dar a devida atenção àquela maravilha, tudo que ela faz é de extrema beleza, vale ouvir tudo, força rara.

Qual a situação mais embaraçosa que já te aconteceu num concerto?
Numa ocasião, de um festival, eu e banda passamos o som e o técnico responsável pela mesa salvou, como de praxe, a nossa passagem. Só que algo ocorreu que ele colocou na hora da nossa apresentação uma outra configuração. E como não tinha muito o que fazer, já que estava absolutamente tudo desconfigurado, fizemos o show inteiro sem conseguir ouvir direito o som que emitíamos, foi uma doideira.

Com que músico/banda gostarias de efectuar um dueto/parceria?
Tom Zé.

Em que palco (nacional ou internacional) gostarias um dia de actuar?
Pelas ruas do mundo.

Qual o melhor concerto a que já assististe?
Gal Costa tocando o show “Recanto”, no Circo Voador, vi-me diante de um monstro divino, de uma força suprema a se manifestar, na minha frente, de carne e osso; foi uma experiência fortíssima e inesquecível .

Que artista ou banda gostavas de ver ao vivo e ainda não tiveste oportunidade?
Led Zeppelin

Qual o concerto da história (pode ser longínqua, mesmo antes de teres nascido) em que gostarias de ter estado presente?
Festival Phono 73, Milton e Elis juntos; Woodstock; Bob Marley, em Trenchtown; Elis em Montreax, e outros tantos.

Projectos para o futuro?
Vamos lançar o álbum novo, sucessor do “Memórias d’Aldeia do Bicho que Mente”, em julho de 2018, e fazer alguns show dos trabalhos recentes na Europa. Tem também um livro de poemas pra sair este ano, e alguns outros projetos ainda em gestação, peças, roteiros pra cinema, livro e disco destinado ao público infantil, e também um livro de ensaios filosóficos.

Que música de outro artista, gostarias que tivesse sido composta por ti?
"Carinhoso", de Pixinguinha.

Que música gostarias que tocasse no teu funeral?
Qualquer canto indígena, qualquer ato sonoro que emerja de um índio.

Obrigado pelo tempo despendido, boa sorte para o futuro.

Antes de terminarmos, tal como habitual apresentamos o single "Portas do Milênio", inspirado no surrealismo dos realizadores Buñuel e Alejandro Jodorowsky...

2 comentários:

  1. Divinamente inteligente sob todos os prismas.O autor é de uma clareza muito profunda que transcende a vã filosofia.

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  2. Apreciar o trabalho artístico de Paulo Beto não é para amadores...

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