domingo, 26 de novembro de 2017

Conversas d'Ouvido com Nosso Querido Figueiredo

Entrevista com Nosso Querido Figueiredo, pseudónimo do cantor e compositor brasileiro Matheus Borges. O projecto nasceu em 2008, passou por diversas fases, atravessou diferentes períodos, mas manteve-se sempre fiel à estética lo-fi com produção caseira. Todos os nossos dedos não são suficientes para enumerar a sua discografia. Antes de celebrar uma década de carreira, Nosso Querido Figueiredo chega ao Ouvido Alternativo, para uma conversa sobre música, e consigo traz o seu mais recente álbum Juventude, editado este mês...

Ouvido Alternativo: Como surgiu a paixão pela música?
Nosso Querido Figueiredo: Não sei dizer. Quando criança, eu tinha um gravador. Tinha uma caixa cheia de fitas e nessas fitas, todo o tipo de som. Sons que eu fazia com a boca, com aparelhos eletrodomésticos, canções que eu inventava. Acho que foi ali que comecei a gostar de gravar, mais de gravar do que de compor.

Como surgiu o nome Nosso Querido Figueiredo?
A ideia que eu tive foi uma banda de nome muito ruim. Um nome que não fosse nem comercial e nem instigante por ser provocativo. Depois eu vi na internet alguém se referindo a outra pessoa por "nosso querido", o que é normal. Aí fui testando nomes e cheguei ao Figueiredo, mas não lembro como.
Nosso Querido Figueiredo - "Juventude"
Editaste recentemente o disco “Juventude”, para quem ainda não ouviu o que pode esperar?
O meu pitching desse disco novo tem sido esse: pop lo-fi, rudimentar e feito em casa. Mas não é bem assim. São 14 faixas, a maioria delas sobre ansiedade e falsas esperanças. O estilo que predomina é um tipo minimalista de synthpop, meio contemplativo, mas também há alguns desvios.

Vives no estado com maior registo de suicídios do Brasil”, encontras alguma justificação?
Moro em Porto Alegre, que é a capital do Rio Grande do Sul, o estado mais ao sul do Brasil e que fica próximo à Argentina e ao Uruguai. O Rio Grande do Sul é, também, o estado com o maior registro de suicídios no Brasil, tem um índice bem superior ao índice nacional. Isso é um fato que é veiculado de tempos em tempos na imprensa e de há uns anos para cá tem sido impossível ignorar o suicídio aqui em Porto Alegre. Tenho a impressão de que antes a imprensa hesitava em noticiar suicídios ou tentativas de suicídio. Nesses últimos dois anos, foram muitos casos noticiados pelos jornais locais. Alguns casos muito bizarros, inclusive. Não acho que isso significa que as pessoas se matam mais hoje do que em outros tempos, mas diz muito a respeito da cultura em geral e de como aumentou nossa tolerância à desgraça dos outros. Esse é um tema que recorre em algumas canções do novo disco. Há uma canção chamada “A Degradação Nunca Foi Tão Popular”.

Sentes que muitas vezes a música é um escape da vida?
Talvez a música dos outros sirva de escape à minha vida e a minha música possa servir de escape à vida dos outros. A minha música, no entanto, não serve de escape para a minha vida. Especialmente as composições do disco novo, que trazem muita coisa do que vivo agora, no Brasil de hoje.

Estás prestes a celebrar uma década de carreira, que dificuldades tens sentido em todo o processo?
Nunca tive dificuldades para escrever ou gravar. Muito pelo contrário. Antes, eu costumava gravar o tempo inteiro. Dois, três, quatro álbuns por ano. Agora sou mais atencioso. No tempo em que eu gravava quatro álbuns, agora gravo quatro canções. A dificuldade surge quando eu preciso explicar aos outros que tipo de música eu faço. Isso porque mudo constantemente de estilo, apesar de manter o método e a essência.

Como gostas de descrever o teu estilo musical?
Geralmente descrevo como lo-fi. Porque lo-fi, em sua raiz, não remete a um gênero, mas às condições em que a música foi registrada - isto é, em equipamentos de baixa qualidade. Descrever assim me permite transitar entre gêneros musicais diferentes. Já fiz samba lo-fi, techno lo-fi, blues lo-fi… Hoje, é difícil dizer. Cheguei num estilo próprio, que tem a ver com o meu método.

Para além da música, tens mais alguma grande paixão?
Em primeiro lugar, é preciso deixar claro que não me considero músico. Sou escritor, escrevo ficção e também roteiros de cinema. O que me atrai na produção musical são as possibilidades. No caso da canção, de lidar com o ritmo das palavras, seus sentidos. Criar significados através de um conjunto de canções. No “Juventude” há muito disso, de como cada canção funciona como um conto, de como a estrutura do disco dá unidade ao todo.

Qual a maior vantagem e desvantagem da vida de um músico?
Acho difícil responder essa pergunta, porque nunca tive uma vida de músico, uma vida 100% de músico. Mas a vida de qualquer um que trabalhe com as artes, tudo isso depende do ambiente em que se está inserido. Hoje, na situação em que o Brasil se encontra, vemos muitos extremos. Estamos em um ambiente extremamente belicoso, de absoluta violência ideológica. Alguns setores da sociedade estão promovendo ataques à cultura no Brasil, o que também conta com o apoio da classe política.

Quais as tuas maiores influências musicais?
Eu admiro muitos compositores, mas o que eu escrevo não tem muito a ver com o que eles escrevem. Quando vou gravar, tranco a porta e deixo as influências do lado de fora.

Como preferes ouvir música? Cd, vinil, k-7, streaming, leitor mp3?
De há uns anos para cá, o streaming dominou minha vida, isso em função da praticidade. Aconteceu com a maioria das pessoas. Tenho minha coleção de vinis, alguns CD's, mas o streaming dominou minha vida.

Qual o disco da tua vida?
Rain Dogs”, do Tom Waits.

Qual o último disco que te deixou maravilhado?
Melodrama”, da Lorde.

O que andas a ouvir de momento/Qual a tua mais recente descoberta musical?
Tenho ouvido bastante o “Filho do Meio”, do Jonathan Tadeu, e o “Exile in The Outer Ring”, da EMA.

Qual a situação mais embaraçosa que já te aconteceu num concerto?
Faz alguns anos que não me apresento. A última vez foi em 2012, acho eu. Naquela ocasião, apresentei algumas canções em formato diferente, sem o computador e com uma banda. Ultimamente tenho pensado em retornar ao palco, apresentar as canções do “Juventude” e também do álbum anterior, o “Eu Não Estou Em Sintonia”.

Com que músico/banda gostarias de efectuar um dueto/parceria?
Fiz boas parcerias no ano passado, duas boas parcerias. As duas à distância, feitas por e-mail. Com o Bruno Ribeiro, que mora na Paraíba, montei a banda Creepypasta. Lançamos um álbum chamado “Medusa”. Depois, produzi e gravei os sintetizadores para o “Melopeia”, EP do Tiago Félix, que é de Alcobaça. Foram duas parcerias bem diferentes, ambas com resultados muito interessantes.

Para quem gostarias de abrir um concerto?
Para o B Fachada!

Em que palco (nacional ou internacional) gostarias um dia de actuar?
Puxa vida. Não sei. Mas posso dizer em que tipos de palco eu gostaria de apresentar minhas novas canções: palcos pequenos, com audiências atentas e não muito numerosas.

Qual o melhor concerto a que já assististe?
A última grande artista que vi foi a Kim Gordon, ano passado. Apresentou-se em São Paulo com seu projeto Body/Head. Foi um espetáculo incrível, agressivo e catártico.

Que artista ou banda gostavas de ver ao vivo e ainda não tiveste oportunidade?
São tantos. E tantos que não vi e nunca verei, como no caso do Leonard Cohen.

Qual o concerto da história (pode ser longínqua, mesmo antes de teres nascido) em que gostarias de ter estado presente?
Algum do Joy Division.

Tens algum guilty pleasure musical?
Não. Não consigo ter vergonha por gostar de algo que os outros consideram ruim. Se eu gosto, gosto.

Projectos para o futuro?
Quero aproveitar o lançamento desse novo disco, dar oportunidades para que as pessoas descubram. Gosto muito de fazer vídeos para as canções. Fiz antes um vídeo para “Eu Vivo no Estado...”. E também, como disse antes, penso mesmo em voltar ao palco. Mas ainda não descobri como.

Que pergunta gostarias que te fizessem e nunca foi colocada? E qual a resposta.
Nunca me perguntaram qual é o meu álbum preferido dentre os 50 que eu gravei nos últimos dez anos. A resposta é: o mais recente.

Que música de outro artista, gostarias que tivesse sido composta por ti?
Gosto das canções dos outros porque são dos outros, porque toda canção é inextricável da experiência de seu criador. Mesmo se eu quisesse, não poderia ter criado qualquer canção escrita por qualquer outro compositor, da mesma maneira que ninguém mais poderia ter escrito “Eu vivo no estado com o maior registro de suicídios no Brasil”.

Que música gostarias que tocasse no teu funeral?
Acho que podem tocar qualquer coisa. De qualquer forma, eu não vou estar ouvindo.

Obrigado pelo tempo despendido, boa sorte para o futuro.

Terminamos com o mais recente disco, Juventude, editado este mês e que se encontra disponível para escuta e download (possivelmente) gratuito através da plataforma Bandcamp.

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