Entrevista com o músico italiano radicado no Brasil, Federico Puppi. Produtor, compositor e violoncelista apaixonado. Mudou-se por amor para o Rio de Janeiro e foi por amor que lá permaneceu. A sua sonoridade cruza o jazz, a electrónica, o rock psicadélico e até o hip-hop. Prepara-se para editar o seu novo disco, que conta com a participação especial de Milton Nascimento, enquanto aguardamos o lançamento do álbum, fomos conhecê-lo melhor em mais uma conversa descontraída, à qual decidimos chamar "Conversas d'Ouvido"...
Ouvido Alternativo: Como surgiu a paixão pela música?
Federico Puppi: Boa tarde. Surgiu meio por acaso. Eu comecei a tocar cello com quatro anos de idade por causa de um curso que apareceu na biblioteca em frente à minha casa em Hône, na Itália. Foi minha avó que soube deste curso e falou com minha mãe para me inscrever. Eu mal sabia o que era um violoncelo, e elas também. Eu lembro de ter ido no curso e encontrei Marco, que foi meu primeiro maestro de violoncelo, quando ouvi ele tocar pela primeira vez fiquei encantado. Aquele som mágico que invadia a sala me parecia incrível! E lembro também quando pela primeira vez peguei um violoncelo na mão (um pequenininho), sentei e tentei tirar os primeiros sons. Para mim era algo fora do normal, algo mágico. Uma sensação nova, desconhecida, poderosa. Desde muito criança eu sabia que na vida queria tocar. Isso sempre foi muito claro.
Tenho fotos de criancinha também, com fone de ouvido ouvindo discos sentado numa poltrona de casa, minha mãe fala que eu ficava calmo ouvindo música.
Como é que um Italiano foi parar ao Brasil?
Boa pergunta. A vida é cheia de coincidências estranhas. Eu morava na Itália e conheci uma artista plástica brasileira que estava lá por uma residência artística. As coisas aconteceram e nos casamos, moramos cinco anos na Itália e depois decidimos sair para outra Nação. Ela queria ir pra Inglaterra e eu para o Brasil, acabou que fomos pro Rio de Janeiro. E assim começou minha aventura brasileira. Depois de um tempo nos separamos, ela foi morar em outro país e eu fiquei aqui no Brasil. Agora estou casado com uma atriz brasileira e não tenho perspectivas, por enquanto, de sair do Brasil.
Actualmente preparas a edição do disco “Marinheiro de Terra Firme”, que conta com a participação especial de Milton Nascimento, já podes antecipar um pouco o que podemos esperar?
O “Marinheiro de Terra Firme”, é diferente do disco anterior, é um album de 2018. Ele comunica com o presente, não conta a minha história, tem a ver com o que sou agora. É inspirado na poética da viagem, da descoberta, do encontro e do Outro. O encontro com o Outro. Eu sou um migrante (como aqueles dos quais falo aqui embaixo), moro no Brasil há quase seis anos e sou sempre o estrangeiro, o Outro. Quase virei estrangeiro até na Itália. Essa migração, essa mistura de cultura me fascina e me apaixona. De alguma forma isso entrou profundamente no disco.
É um album no qual busquei uma sonoridade entre acústico e eletrónico, entre analógico e digital. A relação com as máquinas, os computadores, me interessam muito e nesse álbum utilizo muito estes recursos. Gosto de sonoridades híbridas, inesperadas, gosto do que me deixa curioso.
O processo de criação do álbum iniciou no começo de 2017 e terminou agora, não tive pressa para fazer esse disco e isso me deixou a liberdade de criar e descartar, de voltar atrás, de experimentar sem ter que olhar o relógio. Quase todo o disco foi gravado no meu estúdio em Copacabana e isso me proporcionou o luxo da liberdade!
A participação do Milton neste álbum me enche de orgulho e às vezes me parece difícil de acreditar. Quando ouvi ele cantar “Capitão do Mar” pela primeira vez foi uma emoção muito profunda. Aquela voz, aquela história, aquele ídolo, cantando uma música minha. A leveza e a força da sua voz, a ancestralidade que vem junto ao som é algo poderoso e cristalino. Guardo essa experiência na minha memória com muito cuidado para não esquecer os detalhes. Estou muito curioso de lançar esse álbum e ver as reações, inclusive de mostrar esta música para o mundo.
Apesar de hoje em dia viveres no Brasil, continuas atento ao que se passa em Itália, e um pouco por toda a Europa, que questões têm prendido a tua atenção?
Sim, fico atento ao que se passa na Europa. A questão da crise migratória tem capturado a minha atenção durante as minhas últimas viagens na Itália. É muito triste o que está acontecendo, parece que o mundo está voltando atrás. Têm pessoas fugindo de países destruídos e torturados por guerras que chegam nas costas italianas procurando uma vida melhor pra eles, para os próprios filhos e famílias. Enquanto isso, na Itália está tomando força um movimento xenófobo e racista que cria ódio e raiva contra essas pessoas. Como, se tentar sobreviver e melhorar a própria condição de vida seja um crime. Como, se por causa de ter nascido num país em guerra, você tenha obrigação de ficar neste país, sofrendo abuso e injustiça todos os dias da sua vida. Alguém por acaso escolheu onde nascer? Alguém por acaso tem possibilidade de escolher nascer num país em guerra ou em “paz”? Obviamente não, ninguém tem este privilégio e, justamente por isso, ninguém pode atacar desta forma quem quer fugir de uma situação tão injusta e desumana. Aí aparecem todos aqueles discursos de baixo nível tipo, “Roubam o trabalho”, “São criminosos, delinquentes”, “São um custo para o Estado”. Todo tipo de afirmação que não toma em consideração o ponto base: são pessoas, famílias, vidas. Antes de todos, vidas. Essas pessoas não são números, não são custos, são vidas. Como a sua vida, a minha e de qualquer um. Fico revoltado com esses movimentos racistas e xenófobos que difundem pensamentos ignorantes e retrógrados em pleno século 21. Isso é inadmissível.
Como gostas de descrever o teu estilo musical?
Sempre tive dificuldade em definir meu estilo musical. Principalmente porque produzo música instrumental, mas normalmente defino algo meio jazz, que não é o caso. Minha música tem um forte componente pop. Apesar de ter instrumentais, minhas músicas são, na maioria, canções do ponto de vista da estrutura. Neste disco tem muitos sons eletrónicos também: drum machines, synths, samples com vários ruídos. Mas ao mesmo tempo tem um componente acústico muito forte na percussão, nos violoncelos, violões. Tem influências afro-brasileiras, tem hip hop, tem música regional. Difícil definir. Uma diversidade de World Music no meu quarto.
Para além da música, tens mais alguma grande paixão?
Eu sou apaixonado por Arte, em todas suas formas. Como sou casado com uma atriz, vou muito ao teatro. Adoro esquiar, coisa que no Brasil não é muito fácil. Gosto muito de cozinhar e de culinária em geral, experimentar pratos e beber vinhos são ótimas formas de conhecer outra cultura.
Qual a maior vantagem e desvantagem da vida de um músico?
Ja fiz muitos trabalhos na minha vida: fui jardineiro, trabalhei numa fábrica de janelas, dei aulas de música para crianças, fui garçom em pub, restaurantes e por aí vai… Mas o grande secredo é fazer o que você gosta. A grande vantagem de ser músico para mim é que eu adoro ser músico. É o que eu gosto de fazer, é o que eu quero fazer. Essa é a maior vantagem. Se quiser procurar uma desvantagem pode ser que muitas pessoas não consideram isso uma profissão, tem um certo preconceito sobre quem trabalha com música e arte.
Quais as tuas maiores influências musicais?
São muitas mesmo. Passei a minha infância e adolescência ouvindo música clássica: sobretudo Beethoven, Vivaldi e Tchaikovsky. Depois me apaixonei por música punk: NOFX, Lagwagon e várias bandas punk italianas. Aí vem o jazz e com eles Davis e os grandes clássicos, mas sobretudo o jazz contemporâneo do norte da Europa (E.S.T., por exemplo) e o jazz contemporâneo de NYC. Tenho uma grande influência do rock também, entre todos Jimi Hendrix. Existe também um background de música italiana, sobre tudo de cantautores como De André, Guccini, Dalla, Battisti, Graziani, Silvestri. E por fim a música brasileira com Milton, Gil, Lenine…
Como preferes ouvir música? Cd, vinil, k-7, streaming, leitor mp3?
Atualmente muita música em streaming com o celular, por causa da praticidade e da portabilidade. Tenho uma vitrola em casa e uma coleção de vinil, que ouço de vez em quando, e também um pouco de CD de vez em quando.
Qual o disco da tua vida?
Nao sei responder a essa pergunta. São muitos.
Qual o último disco que te deixou maravilhado?
“Afterglow”, de Ásgeir.
O que andas a ouvir de momento/Qual a tua mais recente descoberta musical?
Vou direto no celular para te responder. Então, descobri recentemente um disco chamado “The Mugician”, de Keyon Harrold. Há pouco descobri também o album “Dissolve”, de Tusks e “Strange Circles”, de Bokanté
Qual a situação mais embaraçosa que já te aconteceu num concerto?
São muitas, mas agora lembrei de uma boa. Estava tocando num festival na Itália com uma cantora chamada Naif, era o fim do show e ela estava apresentando todos os músicos da banda. Quando falou o meu nome a minha cadeira simplesmente se destruiu em pedaços, não sei como. Sei que por pura coincidência me levantei no mesmo instante que a cadeira quebrou e por pouco não cai no chão com violoncelo e tudo. Eu fiquei morrendo de vergonha mas acho que ninguém do público se deu conta do que aconteceu. Pensando bem, essa cena podia ser muito pior: imagina se eu não tivesse levantado na hora certa! Ia ser um desastre. (risos)
Com que músico/banda gostarias de efectuar um dueto/parceria?
Esse tipo de pergunta é sempre muito difícil, mas nesse momento responderia Ásgeir.
Para quem gostarias de abrir um concerto?
Não sei te responder
Em que palco (nacional ou internacional) gostarias um dia de actuar?
Gostaria de voltar ao Montreux Jazz Festival.
Qual o melhor concerto a que já assististe?
Acho que o melhor concerto que assisti foi de uma banda punk-hardcore italiana chamada Mach5. Não porque o show fosse tão incrível, mas porque a vontade de ir ao show era muita: era adolescente e muito fã dessa banda. Com vários amigos fomos de carro até Milano pra ver esse show e a experiência inteira foi muito boa. O show era num centro social ocupado, meio ilegal e aquilo pra nós na epoca era muito alternativo.
Que artista ou banda gostavas de ver ao vivo e ainda não tiveste oportunidade?
Olha, a dificuldade de responder é grande. Pensa que existem muito mais bandas que não vi ao vivo, do que aquelas que vi….
Qual o concerto da história (pode ser longínqua, mesmo antes de teres nascido) em que gostarias de ter estado presente?
Gostaria de ter assistido Jimi Hendrix ao vivo, qualquer show dele.
Tens algum guilty pleasure musical?
Max Pezzali e 883. Nem é tão guilty assim, mas agora aquelas músicas soam ridículas, sei a letra de muitas de cabeça.
Projectos para o futuro?
Muitos, quero lançar esse disco novo e sair com o novo show. Em 2018 esse é o meu principal projeto. Como eu sou hiperativo, não me canso de pensar em mil projetos que um dia, quem sabe, vão virar realidade. A criatividade não falta mas, por enquanto, quero focar neste novo disco.
Que pergunta gostarias que te fizessem e nunca foi colocada? E qual a resposta.
Prato favorito? Pasta alla carbonara.
Que música gostarias que tocasse no teu funeral?
"Serenadefor Strings in E", Antonín Dvořák.
Obrigado pelo tempo despendido, boa sorte para o futuro.
Abraço a todos!
Terminamos ao som do tema "Dente de Leão", extraído do último disco, "O Canto da Madeira"
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