domingo, 14 de janeiro de 2018

Conversas d'Ouvido com Nery

Entrevista com o produtor, DJ e programador Nery. Pela primeira vez, o Ouvido Alternativo abre o seu espaço para um conversa descontraída com um DJ. A excepção é absolutamente justificada e em perfeita sintonia com a sonoridade de Nery, que não se enclausura na electrónica, mas expande-se e funde-se com o jazz, o hip-hop, a soul e o experimentalismo. Em 2016 editou "33" o seu disco de estreia, um surpreendente conjunto de doze músicas, onde conta com inúmeros convidados, entre os quais: músicos de jazz, o guitarrista André Fernandes e uma das vocalistas dos These New Puritans, Elisa Rodrigues. Nery é  um dos nomes que mais dará que falar em 2018, motivo pelo qual quisemos conhecê-lo melhor... 

Ouvido Alternativo: Como surgiu a paixão pela música?
Nery: Surgiu em casa dos meus pais. Ter um pai melómano e obcecado por aparelhagens, e acesso às tapes, às k7, às revistas de audio e aos discos, foi um óptimo input. Crescer numa casa onde a música era quase tão importante quanto a alimentação é incrível e tem o seu peso. Mas acredito que também está directamente ligado ao que cada indivíduo é - a sua personalidade. Por exemplo, o meu irmão mais novo não tem a ligação com a música que eu sempre tive e foi exposto ao input de duas pessoas obcecadas por música. Sempre fui muito curioso com tudo e sempre fiz muitas questões acerca do mundo. Ainda hoje o faço e penso que foi a mistura desse input, a curiosidade de saber como a música era criada e aquilo que a música me fazia sentir que resultou nessa paixão.

Nery é mesmo o teu apelido?
Sim, é um dos meus 3 apelidos.

A tua música não se fecha na electrónica, abre-se a outros estilos e influências, como gostas de descrever o teu estilo musical?
Não gosto muito de catalogar o que quer que seja, muito menos a minha música. Faço música por necessidade e não me tento encaixar numa gaveta. Tento apenas ser o mais verdadeiro possível comigo mesmo.
Obviamente que consegues encontrar algumas influências na minha música: Jazz, Hip Hop, Electrónica experimental, Leftfield music etc, mas essas influências são o que a música de outros me faz sentir. Eu apenas tento descrever essas emoções através da minha própria linguagem. E essa linguagem/assinatura única é traduzida por não ter filtros comigo mesmo. Muito mais do que tentar fazer música A, B ou C procuro fazer o que sinto. Até porque eu tenho tendência em procurar desafios opostos ao que já fiz. Falo essencialmente como produtor, apesar de como DJ ser exclusivamente um Freestyle DJ e por isso mesmo gostar de misturar todo o tipo de música que eu sinta.

Hoje em dia estamos invadidos por falsos DJ’s, que destroem o trabalho árduo de produção, mixagem, etc, será que a culpa é do público que está cada vez menos exigente? Por vezes sentimos que muitas pessoas pagariam e esgotariam festivais, mesmo que do outro lado estivesse alguém simplesmente a carregar no “play” de uma determinada set-list.
Bem, esta questão é uma never ending story. É óbvio que existem DJ’s que não o são, DJ’s que não fazem o seu trabalho com brio e DJ’s que não defendem o mercado. Tal como existem engenheiros que não o são, políticos que não defendem os interesses do país e banqueiros que enriquecem à custa de quem tem menos. Todos sabemos disso e eles vão sempre existir. A questão é a mesma. Há música má que é ouvida e comprada por pessoas e por promotores. E música excepcional que não vende. E não estou a falar de gostos.
No caso específico dos DJ’s, a tecnologia e a internet foram game changers, tanto na forma como temos acesso às ferramentas fulcrais e à própria música como na forma como o mundo ouve música. E é de tal forma determinante que este acesso à informação resulta numa alteração de comportamento social.
Há factores super positivos e negativos nisto tudo e é um assunto que nos faria conversar eternamente. Penso que estas questões não são exclusivas dos DJ's. São questões mais profundas da sociedade e das suas dinâmicas nos dias de hoje.

Para além da música, tens mais alguma grande paixão?
Bom quase todas as coisas que colecciono estão ligadas à música: colecciono discos (vinil) desde que comecei a tocar. Além disso, sempre que posso, compro studio gear e algumas peças de arte.
Tive duas paixões muito fortes, Bodyboard e Rugby, que pratiquei durante cerca de 15 anos e que tive de deixar por razões de saúde. Tirando isso adoro viajar e a maior parte das vezes prefiro fazê-lo sozinho.

Qual a maior vantagem e desvantagem da vida de um músico?
Depende muito de cada um, das várias personalidades e consciências. Para mim é como outra profissão qualquer. O que pode ser uma desvantagem também pode ser uma vantagem. É mesmo uma questão de perspectiva. Eu, por exemplo, adoro trabalhar em casa e trabalhar durante a noite, coisa que é difícil se trabalhar numa empresa standard. Há certamente quem não se consiga organizar desta forma.
Acima de tudo ter a destreza de descobrir aquilo que gostamos de fazer e lutarmos para concretizar essa paixão em trabalho é algo que jamais trocaria por outra profissão.

Quais as tuas maiores influências musicais?
Como produtor: Lapalux, Flying Lotus e Shigeto são talvez os artistas que mais me influenciaram no meu primeiro disco “33”. Mas vamos ver como será o próximo.
Como DJ: por exemplo, D-Styles, Gaslamp Killer, A-trak e DJ Shadow.
E é claro que todos aqueles que me apoiaram e com os quais cresci como por exemplo o Mee_k, o Mr. Cheeks, os Beatbombers e muitos outros.
Também todos os artistas que participaram no meu disco “33” - foram 14 - e que me influenciaram não só no disco mas na forma de abordar e trabalhar música.
Nery - "33"
Como preferes ouvir música? Cd, vinil, k-7, streaming, leitor mp3?
No estúdio, geralmente tenho o Spotify e as minhas playlists a tocar. Quando quero algo mesmo específico ponho o itunes a tocar mp3. Na rua depende mais, se coloquei música nova no meu telefone ou não. A alternativa também é o Spotify.

Qual o disco da tua vida?
Não consigo responder a esta questão. Todos os anos descubro discos incríveis que me marcam incondicionalmente. São muitos! Posso nomear alguns: Miles Davis - "Kind of Blue", Steve Coleman - "Curves of Life", Jeff Buckley - "Sketches From My Sweetheart The Drunk", Tim Hecker - "An Imaginary Country", Massive Attack - "Blue Lines", Flying Lotus - "Reset EP", Shigeto - "No Better Time Than Now", 4Hero - "Two Pages", Goldie - "Timeless", etc.

Qual o último disco que te deixou maravilhado?
O disco que mais ouvi em 2017 e que provocou mais impacto em mim foi o "Fool" do Jameszoo e o seu EP "Flake". Também o EP do Niels Broos. Agora ando a ouvir dois discos produzidos por Austríacos: o "GUMM" do Monophobe, que é um conhecido meu e o "Material" do Cid Rim.

O que andas a ouvir de momento/Qual a tua mais recente descoberta musical?
Ando a ouvir muita coisa diferente: desde o disco que referi na questão anterior a Yussef Kamaal, Photay, Arca, Up High Collective, Alix Perez, Om Unit, Carlos Niño, Charlotte dos Santos, etc.
A mais recente descoberta é o retorno do Henry Wu com o seu alter-ego Kamaal Williams. Lançou o single “Catch the Loop” e está-me a deixar doente! (risos)

Qual a situação mais embaraçosa que já te aconteceu numa performance ao vivo?
Não posso contar. (risos)

Com que músico/banda gostarias deum dia de colaborar?
Flying Lotus, Shigeto, Lapalux, Jameszoo, Niels Broos, Binkbeats ou até o Henry Wu são nomes que um dia gostava de ter a oportunidade de trabalhar. Mas como eu gosto muito do desafio de ter muitos inputs são inúmeros os artistas com quem gostaria de trabalhar.

Em que palco (nacional ou internacional) gostarias um dia de actuar?
Eu adoro tocar seja com o meu trio ou como DJ por isso acho que em todos os palcos com condições que existem pelo mundo. Posso dizer que por exemplo gostava de tocar no Sónar, no Trans Musicales, no SXSW, no Worldwide Festival ou no Sun & Bass Festival, mas gostava de tocar em muitos mais sítios.

Qual o melhor concerto a que já assististe?
Talvez o do Kangding Ray no Offf Oeiras 2009, que fez parte de todo o showcase de artistas da famosa editora do Alva Noto - Raster Noton. Não diria o melhor, mas talvez um dos mais marcantes. Esses dois dias foram incríveis!

Que artista ou banda gostavas de ver ao vivo e ainda não tiveste oportunidade?
Jeff Buckley porque já morreu e tenho uma profunda admiração pelo seus trabalho. Shigeto porque ainda não tive a possibilidade de o ver. E estou muito curioso com o próximo disco do Kamaal Williams e certamente que vou querer ver um concerto dele.

Qual o concerto da história (pode ser longínqua, mesmo antes de teres nascido) em que gostarias de ter estado presente?
Qualquer concerto que tenha sido incrível do Miles Davis. Podia ser no Plugged Nickel em Chicago, mas há tantos dele que foram incríveis.

Tens algum guilty pleasure musical?
Não. Não me sinto nada culpado com a música que passo, faço e que oiço.

Projectos para o futuro?
Tenho vários. Estou neste momento a compor nova música para um novo disco. Ainda sem pressas porque a fasquia que coloquei é um pouco utópica.
Tenho um novo projecto ligado à música mas que não passa por compôr música e que ainda não posso revelar. Vai arrancar já este mês, é parte de um objectivo pessoal e está relacionado com algo que sempre gostei de fazer.
E tenho outro disco ou EP que gostava de ter finalizado até ao final do ano e que resulta de uma parceria com o baterista do meu trio, João Reis.

Que pergunta gostarias que te fizessem e nunca foi colocada? E qual a resposta.
As baleias bebem água? Sim. De facto até têm enormes rins.

Que música de outro artista, gostarias que tivesse sido composta por ti?
Tantas! (risos)
Kamaal Williams - "Catch the Loop" por exemplo é a mais recente que ouvi e que gostava que fosse minha.

Que música gostarias que tocasse no teu funeral?
Estou mais ocupado em descobrir músicas que possa ouvir enquanto vivo.

Obrigado pelo tempo despendido, boa sorte para o futuro.

Recuamos agora até 2016, para nos despedirmos ao som da música de Nery e do disco "33", que se encontra disponível para escuta através da plataforma Bandcamp.

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