sábado, 19 de janeiro de 2019

Conversas d'Ouvido com DOSSEL

Entrevista com DOSSEL, alter-ego do produtor e compositor brasileiro Roberto Barrucho. Após experiências prévias em projectos como Geringonça e Contemporâneos, parcerias com nomes como Mahmundi, aventura-se agora numa carreira solo e prepara num futuro próximo a edição do debut "A Vela e o Sopro". Nesta "conversa profunda", quisemos saber tudo, as influências, outras paixões, discos de uma vida, descobertas musicais recentes, ambições, sonhos e desejos. Tudo isto e muito mais para desvendarem nesta "Conversas d'Ouvido"...


Ouvido Alternativo: Como surgiu a paixão pela música?
DOSSEL: Desde muito jovem me lembro de ouvir música em casa, com meu padrasto, que também tinha muitos amigos músicos e artistas. Lembro também da transição do vinil para o K7, meu pai tinha muitas coisas, latinas também. Lembro que minha irmã ganhou um radinho de pilha que dava para gravar e reproduzir fitas, dessa forma gravávamos as músicas que gostávamos quando elas tocavam no rádio, uma espécie de playlist analógica, uma mixtape. Já na adolescência, fazia uns CDs para os amigos, com as novidades musicais que havia pesquisado, coletâneas das coisas que estavam rolando e eles não conheciam. No entanto, a semente disso tudo creio ter sido na infância, minha primeira escola se utilizava da filosofia Waldorf, linha de pensamento que valoriza o desenvolvimento de sensibilidades e intuição artísticas, assim como estimula a autonomia pessoal e reconhece as individualidades. Esse estímulo e contato inicial com as expressões artísticas foram determinantes para um apontamento pra esse universo. Aos 15 anos comecei aprender violão e desde então sempre gostei mais da criação do que a reprodução de obras.

Como surgiu o nome DOSSEL? Podemos encará-lo como um alter-ego?
DOSSEL surge inicialmente pela sonoridade da palavra. Logo que fui pesquisar seus significados, me encantei pelo conceito do dossel florestal, na ecologia. É um ambiente suspenso, a cerca de 20-25 metros acima do solo. Uma camada da floresta tropical situada entre a terra e o céu, um ambiente biodiverso a ser explorado, onde os cientistas pesquisam há anos para descobrir os seus mistérios. Devido à falta de luminosidade pela densidade de sua folhagem, as espécies de animais que lá habitam enxergam somente alguns metros à sua frente, por isso desenvolveram sons próprios para se comunicarem no dossel. De pronto me identifiquei com esse universo ao mesmo tempo biodiverso e misterioso, e assim correlacionei com o meu momento de produção artística e a forma que esse trabalho veio se revelando para mim. Dessa maneira podemos dizer que é sim, uma espécie de alter-ego, uma atmosfera, um ambiente em que me insiro e habito para abraçar e dar vazão à minha criação.

Segundo sabemos preparas a edição de um álbum num futuro próximo, já podes levantar o véu sobre o que podemos esperar?
É um disco onde me permito experimentar e passear entre canções, temas, vinhetas, recortes e poemas. Ao prepará-lo, sinto que o trabalho vem tomando novas formas e se revelando um desenho cada vez mais bonito. Gosto de questionar e quebrar os formatos tradicionais trabalhar em cima de timbres e ambiências, nuances. 

A produção na tua vida é uma necessidade, ou uma paixão?
Tenho percebido que a minha produção artística, é sim uma necessidade, de organizar os sentimentos, dar vazão às ideias que me surgem, expressar meu olhar e sensações a partir de uma estética elaborada por mim. Me parece uma boa forma de passar os anos e fazer recortes, fotografias, a partir de um olhar peculiar sobre as experiências do viver e se relacionar.

Após algumas experiências prévias, como despertou em ti a vontade de te aventurares a solo?
Depois de alguns anos fazendo música, compondo e atuando mais nos bastidores, decidi tomar o processo por inteiro, da criação e composição até a produção e finalização do trabalho. Esse caminho "solo", tem sido de muitas descobertas de potencialidades em mim e também o espaço para realização de parcerias.

Conheces alguma coisa da música portuguesa?
Estive em Portugal há alguns anos, ouvi fado em algumas casas tradicionais e fiquei encantado. Fora isso, conheço o trabalho da cantora Márcia. O cantor brasileiro Luca Argel, que vive no Porto desde 2012, é um amigo que tenho carinho grande e de quem admiro o trabalho. Talvez a artista portuguesa que mais goste seja Matilde Campilho, não é música, mas sua poesia é muito sonora. Adoro como declama. Já “trocamos algumas figurinhas” e tivemos sintonia, abrindo portas para uma parceria futura.

Quais as tuas maiores influências musicais?
Gosto muito da música brasileira do final dos anos 60 e 70, Moacir Santos, Os Tincoãs, Baden Powell, Dorival Caymmi, Moraes Moreira e Beto Guedes.
Como gostas de descrever o teu estilo musical?
Penso que se enquadra no conceito de música brasileira contemporânea. Apesar de referências setentistas, procuro fazer um som que represente o tempo que vivemos, que possa ser atemporal, no entanto, que o registro carregue características do nosso tempo. 

Citando-te, “DOSSEL é um ambiente suspenso; um espaço de exploração e descobertas, se conecta à terra pelo caule das árvores, tronco que nos leva ao topo de suas copas. É o alto da floresta, é o baixo da nuvem, o estrato da biodiversidade”, a natureza parece-nos uma inspiração para ti, será a natureza também um caminho para a auto-descoberta?
Com toda certeza. Estava reparando, dos singles lançados até agora, os três fazem uma relação do homem com a natureza, em contraponto à vida urbana e contemporânea. É parta da temática do disco, que virá ainda neste primeiro semestre. Na primeira, "AMNST", falamos do cerrado como um lugar imaginário, para encontro com a natureza e por isso a paz interior, o eu superior, um lugar para a cura das dores. Oposto da uma vivência “anestesiada”, nas cidades grandes, onde nos exigem uma aceleração cotidiana pra dar conta de tantas demandas impostas.
O 2.° single faz uma analogia de uma "Canoa Nova" como meio de seguirmos o fluxo da vida contemporânea - como o navegar de um rio, um fôlego para seguirmos remando. Fala também do ciclo das marés, e quando ela baixa, areia toca o pé e de forma serena vem renovar a vida: “leva e lava, clarinho vai ficar, as idéias navegarão”.
Já a última a ser lançada, nos coloca em pleno oceano como meio de vida a pilotar nossos barcos, a partir dos ventos soprados em nossas direções. "A Vela e o Sopro" propõe que sopremos na mesma direção, temos o sopro como símbolo do ímpeto, da intenção. Nos lembra as nossas potências, convocando para um somatório de forças afim de mudar as realidades. E se a gente assoprar na mesma direção? O vento ganha força, já muda a sensação. A partir de um fortalecimento individual, pelo encontro de nossas firmezas – “Do barco hasteio a vela/Me jogo no mar/Quando em terra firme acende a brasa e deixa queimar, queimar devagar”.

Para além da música, tens mais alguma grande paixão?
Fotografia e poesia. Penso que as linguagens artísticas se relacionam e se alimentam, são maneiras de representar e criar realidades. Decifrar e recriar a vida, de infinitas maneiras.

Qual a maior vantagem e desvantagem da vida de um músico?
O aspecto mais interessante é a possibilidade de traduzir histórias, vivências, visões e sensações através da música. Comunicar ao outro e assim conectar-se com pessoas. A desvantagem são os desafios necessários para tornar estas práticas uma atividade financeiramente viável e possível, principalmente no Brasil e outros países subdesenvolvidos, outrora colonizados. Viver desta arte ainda é um caminho árduo, ao qual poucos têm acesso.

Como preferes ouvir música? Cd, vinil, K-7, streaming, leitor mp3?
Vinil. Gosto da ideia do registro físico/analógico da música ali naqueles sulcos da bolacha. É duradouro, quase mágico. Outra coisa é o tempo necessário para todo o processo de escolher o disco, tirar do encarte, posicionar a agulha. É uma outra relação com a música. Mais íntima. Não estar lidando com nada digital é uma vantagem também ao ouvirmos a música do vinil.

Qual o disco da tua vida?
"Os Afro-sambas", de Baden Powell e Vinícius de Moraes.

Qual o último disco que te deixou maravilhado?
O "Lição#2: Dorival", do conjunto instrumental paulista Quartabê é simplesmente fascinante. O primeiro, onde fazem releitura de Moacir Santos, é também uma obra e tanto. 

Qual a tua mais recente descoberta musical?
O projeto KOKOROKO, baseado em Londres, que na verdade é um coletivo de jovens músicos apaixonados por afrobeat, misturam jazz com ritmos tradicionais de África.

Qual a situação mais embaraçosa que já te aconteceu num concerto?
Certa vez estava a fazer uma versão de uma canção do conjunto Los Hermanos e esqueci parte da letra no meio da apresentação. Fiz a melodia cantarolando e entoando algumas sílabas e retomei a letra, mas houve essa emenda, buraco.

Com que músico/banda gostarias de efectuar um dueto/parceria?
Arnaldo Antunes. Adoro sua poesia concreta e a forma como lida com a palavra e faz canção. Penso que um dia podemos chegar a cruzar nossos caminhos.
Em que palco (nacional ou internacional) gostarias um dia de actuar?
O palco do Circo Voador é uma unanimidade entre os músicos do Rio de Janeiro. A casa tem uma acústica interessante e pode-se ver bem todo o palco de muitos pontos da tenda. Há uma atmosfera aconchegante e emblemática naquele palco, onde já assisti muitos artistas que inspiraram e inspiram meu fazer artístico e que marcaram momentos da minha vida.

Qual o melhor concerto a que já assististe?
Essa pergunta é difícil. Consigo ver diferentes nuances e belezas distintas nos concertos. Os mais impactantes foram da Marisa Monte e do conjunto Cordel do Fogo Encantado.

Que artista ou banda gostavas de ver ao vivo e ainda não tiveste oportunidade?
Gostaria muito de ter assistido o trio vocal baiano Os Tincoãs.

Qual o concerto da história (pode ser longínqua, mesmo antes de teres nascido) em que gostarias de ter estado presente? 
Trio Elétrico Novos Baianos, no carnaval de Salvador.

Tens algum guilty pleasure musical?
Já tive quando mais novo, acho que por ter alguns preconceitos e ideias fechadas. Hoje em dia procuro aceitar mais os caminhos tortos e a liberdade que podemos ter no que tange a criação, manias e formas de nos expressar.

Projectos para o futuro?
Após o lançamento do primeiro disco, vou me dedicar a alguns viodeoclipes e shows. Em algum momento também quero reunir meus escritos em um livro.

Que pergunta gostarias que te fizessem e nunca foi colocada? E qual a resposta?
Qual anseio tens para tua geração de artistas?
Desejo que possamos dar continuidade à brilhante e grandiosa história da música brasileira, no entanto, renovando as referências e trazendo uma assinatura contemporânea para o que é produzido nos dias de hoje. Que possamos superar o tropicalismo excludente, que deixou de fora gênios como Tom Zé, e conceituou como “malditos” compositores como Jards Macalé, Luiz Melodia e o incrível Itamar Assumpção. Que superemos a bossa nova e toda arte que ainda não for inclusiva, restrita à elite. A Cultura Popular ainda é resistência, tradições que sobrevivem ao tempo, passada de família em família, isso é nosso maior patrimônio, há anos alimenta e cura vosso povo. Que toda forma de arte possa gerar vida, movimento e que ela possa se bastar, se alimentar de seus frutos, que possamos não depender de patrocinadores, que na verdade são grandes marcas ditando comportamentos, consumo de arte e o entretenimento.

Que música de outro artista, gostarias que tivesse sido composta por ti?
Já tive essa vontade de ter composto algumas canções. É uma sensação deveras boa. Há uma em particular que me identifIco e gostaria de ter feito. Chama-se "E.C.T", do Nando Reis e Marisa Monte. 

Que música gostarias que tocasse no teu funeral?
"Coisa N°4", de Moacir Santos. Aliás, se há um 2.° disco da minha vida seria o "Coisas", do Moacir.

Obrigado pelo tempo despendido, boa sorte para o futuro.
Antes de nos despedirmos, ficamos ao som do mais recente single "A Vela e o Sopro"

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